Uma grande e memorável peça de Rui Miguel Tovar, uma entrevista a Nuno Martins (com 82 anos de idade em 2016), publicada n’O Observador em 27 de Outubro de 2016, donde extraí os seguintes excerptos.
O Sporting LM em 1960. Nuno Martins, entrevistado em 2016 por Rui Miguel Tovar, é o capitão da equipa, o segundo de pé a contar do lado esquerdo.
SOBRE MÁRIO WILSON (com quem Nuno Martins jogou na Académica de Coimbra nos anos 50)
Quem jogava nessa altura?
Na baliza, Orlando Carvalho Ramin. Na defesa, eu à direita, Melo à esquerda, Corina e Carola no meio.
Corina e Carola, isso são desenhos animados?
Eheheheheh. O Corina é o Mário Wilson, o Carola é o Mário Torres.
Mário Wilson. O Nuno jogou com o Mário Wilson?
Ai sim, sim. Muito. E bem.
Como era ele?
Metia a bola onde queria desde a defesa. E metia-a de uma maneira muito própria. Repare: toda a gente sabe que se nos inclinarmos muito para trás, a bola sai pelo ar, totalmente desgovernada. O Mário Wilson, não. Jogava quase sempre inclinado e as bolas saíam-lhe rasas, perfeitas para os extremos.
E como pessoa?
Era um companheirão. Discutia problemas que não lembram ao diabo, sempre bem-disposto, muito educado, vivo, cheio de humor. Os irmãos também estavam em Coimbra: o Guilherme Oliveira jogava nas reservas da Académica e o Henrique era basquetebolista, também da Académica.
MOÇAMBIQUE E EUSÉBIO
Uau, isso é memória RAM. Então, e depois da Académica?
Fui jogar para Moçambique. Fiquei encantado com aquela terra e quis ficar. De 1958 a 1964, fui jogador, capitão e treinador do Sporting de Lourenço Marques.
Ah, então foi assim que se cruzou com Eusébio?
Sim, vamos lá começar a conversa a sério [risos]. Num determinado dia, ou melhor noite. Naquela altura, os treinos eram das 19 horas até às 22, 22 e tal. Estava eu a trabalhar com os três guarda-redes com bolas medicinais quando me aparece um seccionista do Sporting, de seu nome Vigorosa, a dizer “Estão ali cinco rapazes que querem treinar e vir à experiência. Um deles, já o vi jogar e é muito bom, um miúdo com uma habilidade nata, um fora de série”. Àquela hora, não dava muito jeito mas eram miúdos e devemos sempre dar-lhes uma oportunidade. Ok, disse eu, que calcem umas sapatilhas e vamos observá-los. Aparece então um miúdo magrinho, de 16 anos, e espantou-me a sua voz de líder. Perguntei-lhe o porquê ter aparecido só àquela hora e ele responde-me: “Bem, fomos ali ao campo do Desportivo [conotado com o Benfica de Lisboa, devidamente simbolizado com a águia] e não nos deixaram entrar.”
Porquê?
O treinador de juniores do Desportivo era um senhor chamado Mário Romeu, funcionário da embaixada italiana em Lourenço Marques, e certamente já tinha acabado o treino. Ter-lhes-á dito “não, hoje já não há mais nada para ninguém.” E o Eusébio, juntamente com os seus quatro amigos, saiu do Desportivo e entrou pelo portão do Sporting, onde estava eu a treinar os guarda-redes.
E depois?
Eles, os cinco, treinaram comigo e com os três guarda-redes. Fizemos um campo improvisado e jogámos uma peladinha, onde percebi que o Eusébio tinha uma habilidade acima da média. Disse-lhe logo ‘tu ficas no Sporting, podes ser inscrito’ ao que ele respondeu imediatamente ‘inscrevo-me eu não, ou nos inscrevemos todos ou não se inscreve ninguém’. A tal firmeza na voz aos 16 anos. Isto é muito importante. Não é para todos. Eu então disse ao Vigorosa para os inscrever a todos.
Desculpa lá mas vou repetir-me: e depois?
Aos 17 anos, o Eusébio já era um jogador feito. Chamei-o ao meu gabinete e perguntei-lhe se queria mais uma época nos juniores ou se queria saltar já para as honras, que era como se chamavam os seniores. Ele respondeu-me na hora: ‘Quero ir para as Honras.’ Pronto, o resto é história.
Não, não. Conte lá algumas histórias do Eusébio.
Os primeiros jogos foram verdadeiramente empolgantes. Ele tocava na bola e levava tudo à frente. Era um fenómeno. Marcava golos, assistia os companheiros, fazia todo o tipo de diagonais.
Jogava a que posição?
Interior-esquerdo. Sempre. E sempre com o número 10. Tinha cá um pé esquerdo. Mais habilidoso e potente que o direito. Com o passar do tempo, habituou-se a jogar mais com o direito do que com o esquerdo e isso permitia-lhe fazer todas as diagonais possíveis e imaginárias. Lembro-me de uma dele.
Onde?
Numa viagem às Maurícias, pela seleção. Em Lourenço Marques, só havia pelados [campos sem relvado]. E nas Maurícias, o clima é marítimo, pelo que a relva era húmida. O Eusébio calçou umas chuteiras com pitons rasos e fez jogos extraordinários, sem cair uma única vez. Os locais estavam verdadeiramente espantados porque alguns deles ainda tropeçavam, escorregavam, caíam. O Eusébio não. Parecia um bailarino. E marcava golos. Na estreia pelo Sporting, ganhámos 4-1 e ele marcou logo um ou dois. A partir daí, começou a ser conhecido. E a lenda foi crescendo, crescendo, crescendo…
É aí que aparece o Sporting e o Benfica?
Não, não. Antes disso, há o Belenenses. Lembro-me perfeitamente que o Belenenses fez uma digressão por Moçambique e jogou com a seleção dos naturais. Quando chegou a Portugal, o mestre Otto Glória, treinador do Belenenses [e seleccionador de Portugal no Mundial-66], foi questionado pelos jornalistas portugueses sobre Eusébio, porque já se falava dele. Mas Otto Glória respondeu que “não, como Eusébio havia lá muitos.” Sinceramente, não percebi.
Terá Eusébio jogado mal nesse dia com o Belenenses?
Sim, não terá sido o Eusébio de sempre mas dizer que há muitos como ele… Essas reticências do Otto Glória fizeram com que o Sporting não apostasse logo no rapaz. Aliás, eu próprio, como treinador do Sporting de Lourenço Marques, recebi dois telefonemas do Sr. Fernando da Costa, chefe de departamento do Sporting Clube de Portugal, a perguntar-me se o Eusébio era, de facto, aquilo que se dizia na imprensa. Eu respondi sempre que sim, que o rapaz não enganava ninguém, mas do lado de lá disseram-me que ele não ia para o Sporting.
É aí que aparece o Benfica?
Antes de responder a isso, vou dizer-lhe uma coisa: um certo dia, estava eu a preparar-me para sair de casa em direção ao Campo João da Silva Pereira para mais um treino no Sporting, quando o Eusébio bate-me à porta. Foi lá despedir-se de mim, que já não iria treinar nessa quinta-feira. Até me lembro da frase dele: ‘Eu vou para o Puto’, como era conhecido Portugal. Eu questionei-o: ‘Mas então já assinaste, já falaste com a Direção” e ele respondeu-me ‘já, já’. E estava correto. A Direção estava ao corrente de tudo e o Eusébio desapareceu de cena. Antes disso, pedi-lhe uns minutos, fui a casa e ofereci-lhe um casaco-blazer que tinha comprado na África do Sul. Ele agradeceu e adeus.
E a teoria do rapto?
O que eu sei é que o Eusébio pernoitou na casa de um senhor chamado Vasco Machado, juntamente com o Major Rodrigues de Carvalho, que mais tarde acabou por ser Brigadeiro e Presidente da Assembleia Geral do Benfica. Ora o que se passou? Conta-se que esse Major foi à estação central dos Correios, Telégrafos e Telefones de Lourenço Marques, ao lado do Café Scala, na parte baixa da cidade, e emitiu dois telegramas. Um para o Sporting Clube de Portugal, a dizer “Eusébio segue navio motor, Príncipe Perfeito”. E outro para o Benfica. “Rute, segue avião hoje”. O que aconteceu? Enquanto o Sporting fez contas de cabeça sobre a viagem de barco, que atracava em Chelas, o Benfica foi buscar o Eusébio à Portela naquela noite de dezembro 1960. Nesse ano, fomos campeões.
Fomos, quem?
O Sporting de Lourenço Marques. Eu a capitão, o Eusébio a número 10.
Voltou a ver o Eusébio?
Sim, muitas vezes. Por exemplo, em 1963, quando o Sporting de Lourenço Marques ganhou o campeonato distrital, provincial e a eliminatória com o campeão de Angola, que lhe garantiu o direito de jogar a Taça de Portugal. E quem foi o nosso adversário? O Sporting Clube de Portugal. Viemos a Lisboa e fizemos os dois jogos. Perdemos o primeiro por 3-1, a ganhar 1-0 ao intervalo. Ficámos hospedados no Hotel Suíço Atlântico, junto ao Elevador de Santa Justa. E o Eusébio foi lá ter lá connosco, almoçar. Quem lá estava era o fotógrafo sr. António Capela, do “Record”. Por graça, vestimos o Eusébio com a camisola 10 do Sporting de Lourenço Marques e tirou-se uma fotografia. Eu aí disse-lhe ‘estás metido numa encrenca, se essa fotografia sai…’ e o Eusébio, já jogador feito e consagrado no Benfica, pediu então ao Capela para que a fotografia não fosse publicada. Dito e feito. Acordo de cavalheiros. Na segunda mão, outra vez em Alvalade, perdemos 4-2, mas esteve 2-1 e 3-2.
Nuno Martins em 2016. Foro de Pedro Azevedo, retocada.