Copio para aqui, com alterações menores, um comentário que fiz em resposta ao comentário do nosso amigo da caneta René Boezaard (holandês, não conheceu Moçambique antes da Independência mas que conhece muito bem a realidade desportiva moçambicana recente) de que cada um parecia ter a sua verdade na questão de haver racismo em relação ao Eusébio no Sporting Clube de Lourenço Marques por ele (Eusébio) ser preto num clube de brancos (pois essa é a questão em análise, não o racismo em geral):
“Não sei René. As coisas eram como eram no tempo colonial e o facto é que tipicamente as poucas cidades moçambicanas eram esmagadoramente habitadas por brancos. Logo, a maioria dos clubes situavam-se nas cidades, enquanto que as perifierias eram esmagadoramente habitadas pela população de raça negra.
Em termos de sócios, os clubes reflectiam essa realidade (falo dos anos 60 e 70 – nasci em 1960) mas NÃO (e aí concordo com o Sr. Braga Borges) em termos de atletas e muito menos de atletas de raça negra de talento no futebol, que na minha opinião, podiam ir para onde bem quisessem. Sim, os atletas negros (as suas famílias) tipicamente eram muito mais pobres pelas razões sócio-económicas conhecidas. Mas para teres ideia, eu, que sou branquinho da Silva e que sempre vivi na Polana, nadava no Desportivo, e sempre só tive um fato de banho. A minha roupa tinha duas mudas, um par de sapatilhas e um de sapatos.
A ideia de que os brancos viviam em Moçambique num mar de luxúria e os negros num mar de miséria é extremamente relativa e deve ser contextualizada, o que, por razões ideológicas e de perspectiva, tende a ser descurado. A maior parte dos brancos que iam viver para Moçambique iam com uma mão à frente e outra atrás e a riqueza que acumulavam era acumulada através do trabalho. Até quase aos anos 1970 não havia uma universidade em Moçambique – nem para brancos nem para pretos.
Adicionalmente, tirando o futebol, a maior parte dos desportos praticados eram praticados por brancos, por razões mais culturais dos brancos de Moçambique que outra qualquer. Em Moçambique praticava-se muito mais desporto e fazia muito mais parte da cultura local e da rotina das pessoas que em Portugal, mesmo ainda hoje. A população negra de Moçambique nem por isso praticava desporto, apesar de nos anos 60 a situação estar a mudar muito rapidamente. Por exemplo, no Distrito de Lourenço Marques em finais dos anos 60 o desporto já era uma parte importante do currículo escolar e estava dotada com infra-estruturas desportivas, o que em Portugal não acontecia.
Tendo dito isto, creio que, claro que, na estrutura social e de poder os negros moçambicanos não tinham quase nenhum voto na matéria. Eram cidadãos de 2ª e 3ª classe e frequentemente desrespeitados e abusados. O racismo era endémico e inerente em relação a tudo o que se fazia. Eu creio que isso se estava a alterar e alteraria mais até ao final dos anos 70, tivesse o arranjinho colonial perdurado mais uns tempos até a uma independência que não havia dúvida havia de acontecer e teria de acontecer. Mas tudo acabou com um enorme “bang” em 1974, sob a égide dos senhores Comité Central da Frelimo, que tinham ideias peregrinas sobre o que fazer.
Voltando aos clubes, lembro-me de, por exemplo, no princípio dos anos 70, o Desportivo, o clube onde eu cresci, ter feito esforços para recrutar mais sócios, não descurando os sócios de todas as proveniências raciais e sócio-económicas, que era algo que especificamente me lembro. Se não me engano as quotas nessa altura eram uns 100 escudos por ano, o que era praticamente de borla.
Não sei como era no Sporting em termos de sócios. Mas imagino que havia clubes (Clube de Pesca, Clube Marítimo, Clube Militar, Clube de Golfe da Polana, Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, Grémio) não houvesse muitos sócios negros. Mesmo para os padrões económicos mais elevados dos brancos, esses eram clubes caros e de elite. Mas esses clubes especializavam-se em poucos desportos caros e tinham um cariz social muito mais acentuado que os restantes.
Mas mesmo aí duvido que o critério de acesso fosse o da cor de pele. Acho que era mais a côr do dinheiro e as afinidades dos sócios. Num contexto de uma sociedade racialmente empolada, em que como, uma vez referiu o meu caro Dr. Mário Machungo, no princípio dos anos 70, um negro que quisesse alugar um apartamento na Polana…simplesmente não acontecia.
Ou, como uma vez me relatou serenamente o Sr. Eurico Perdigão, que me treinou no Desportivo, quando uma vez levou o seu mainato (negro) ao Hospital Central Miguel Bombarda às urgências uma noite já não me lembro bem porquê, ele quase que teve que dar um murro em quem o atendeu pois queriam chutar o jovem nem sei bem para onde porque ele era preto (para que conste, ele foi atendido e tratado ali, mas o Sr. Perdigão referiu ter a certeza de que se ele – um branco – não tivesse ido com ele ao hospital, e insistido, isso nunca teria acontecido.
E esta é a “minha” modesta verdade.”
Quanto à natação, que ambos conhecemos, e que pratiquei no Desportivo até 1975, quando fui estudar para Coimbra, sim, quase não havia nenhum nadador negro em LM nos anos 60 e 70 – mas isso era necessariamente “racismo”? explica lá isso. Afinal, o que é “racismo”? ainda hoje se alguém for a Maputo, a natação é um desporto urbano e de elite. E no tempo colonial a elite era esmagadoramente branca.
Para além de que, por razões que nunca estudei, em geral e em todo o mundo as pessoas de raça negra, que limpam o sebo a tudo e todos em atletismo, basquet e muitos outros desportos, são notoriamente omissos dos livros de recordes em natação. Mas eu acho que é uma questão de tempo e de oportunidade e eles e elas vão aparecer.
Como acima refiro, os padrões de prática desportiva em Moçambique reflectiam os padrões sócio-económicos que sim, reflectiam uma estrutura inerentemente racista. Mas não por si só e em absoluto. No resto de Moçambique hoje em dia ainda não se pratica tanto a natação, em boa parte simplesmente porque as piscinas que há são as que se fizeram há 50-60 anos, estão num estado duvidável e por maioria de razão continuam situadas no meio das cidades.
Creio que isso acontece em parte também porque é imensamente mais barato jogar à bola ou correr do que jogar ténis, correr carros, nadar ou jogar golfe.
No caso acima abordado, estamos ainda por cima a falar de descriminação contra o Eusébio (entrevista à Ùnica, Novembro de 2011), um expoente de talento que marcou o mundo e cujo valor já em 1958 quem estava nos meandros do futebol em Lourenço Marques reconhecia. A ideia de que ele terá sido maltratado ou menosprezado por ser preto (saliento que ele é mulato, o pai dele era branco de Angola e morreu em Moçambique quando ele era miúdo), ainda por cima no futebol, cujas putativas barreiras raciais já haviam sido brilhantemente escancaradas por muitos outros antes dele, parece-me ser um pouco peregrina. Que havia (e há, não te enganes) racismo nem é tanto a questão. Afinal, quase que aposto que em 1959 o Sporting de Lourenço Marques não devia ter um sócio preto. Mas o Eusébio ter sido prejudicado por isso?
Eu duvido.
Mas ele lá sabe.