O Maestro Chibanga, numa fotografia recente.
O jovem Chibanga pronto a tourear.
Cartaz de uma tourada em que figura Ricardo Chibanga.
O Dr. Christian Barnard, cirurgião cardiologista sul-africano pioneiro em transplantes de coração, cumprimenta Ricardo Chibanga.
Um casaco de tourada de Ricardo Chibanga.
Na Benedita, Ribatejo, os forcados amadores de Santarém falam com o Maestro Chibanga.
O Maestro num jantar no Entroncamento em Julho de 2011.
O Maestro Chibanga com Pedrito de Portugal em Almeirim durante este ano.
Nuno Marques, cabo dos Forcadores da Chamusca, com o Maestro Ricardo Chibanga.
O jornalista Ricardo Relvas com o Maestro no Cartaxo, no dia 1 de Novembro de 2011. Foto do farpasblogue.
Em baixo, um texto de Joaquim Arena, publicado em Novembro de 2010, aquando de mais um aniversário do Maestro Ricardo Chibanga:
Os olhos que agora me observavam eram os mesmos que recordaram o medo ao verem surgir na sua direcção o primeiro touro a sério, na praça de touros do Campo Pequeno, no ano de 1968. Os mesmos olhos que veriam a admiração no rosto do público, nas bancadas, por um africano poder sair-se tão bem na lide de uma besta mortífera de mais de quinhentos quilos. Nas suas casas, os portugueses também viam, nos directos da RTP – quando o sangue era apenas uma pasta escura e brilhante que escorria pelo dorso do animal – , a coragem, os reflexos e a velocidade felina daquela nova figura, que ia ao ponto de enfrentar o touro de joelhos e cuja cor da pele contrastava, furiosamente, com o brilho prateado e reluzente do fato.
Para as crianças de então, a sua coragem não era tão perturbadora nem aflitiva. O super-Chibanga era um novo super-herói. E a impressão de magia que causava na arena era reveladora de toda a beleza dos seus movimentos; da paixão pela sua arte, a de um condutor do espectáculo. No fundo, era o rapaz da Mafalala perseguindo a grandiosidade. E Ricardo Chibanga passou depressa de promessa da arena a estrela em ascensão.
Seguiu-se a Espanha. Sevilha e mais tarde Madrid consagrá-lo-iam definitivamente, e os jornais, entusiasmados com esta nova descoberta, teciam rasgados elogios de página inteira sobre El Africano, e festejavam a chegada do primeiro matador de touros negro da história da tauromaquia. No dia em que a morte roçou-lhe a figura através de uma cornada inesperada nos queixos, os jornalistas acompanharam diariamente o coma de Chibanga, mantendo o mundo da afición num suspense permanente, que haveria de durar várias semanas.
Quando Chibanga finalmente regressou, Picasso declarou aos jornais, do alto dos seus 89 anos, que o moçambicano era dos poucos matadores capazes de o levarem a uma corrida. E nas bancadas o mestre não parava de gritar: “Olé! Chibanga!”
O homem afável de óculos de aros de massa, que de um canto do Café Central da Golegã cumprimenta os amigos, atingiu o estrelato como poucos na sua arte; apertou a mão e conviveu com artistas portugueses e internacionais e jantou com as maiores figuras do seu tempo. Christian Barnard, o cirurgião sul-africano, autor do primeiro transplante cardíaco, e o multimilionário Stanley Ho, fizeram questão de o conhecer pessoalmente e expressar-lhe toda a sua admiração. E o que terão visto nele foi que a grandiosidade que o acompanhava residia na humildade. Que a vida toda lhe pertencia.
O matador africano atravessou o Atlântico para encantar a Monumental do México, as praças da Venezuela, Colômbia, Califórnia, formando, ao lado de Amália Rodrigues e do seu compatriota Eusébio, o triunvirato dos embaixadores de Portugal de maior prestígio, entre os finais das décadas de sessenta e inícios de setenta. No dia da sua consagração, na Maestranza de Sevilha, quando se preparava para tomar a sua alternativa, e a mando do governo português, a RTP deslocou uma equipa de técnicos e jornalistas para relatarem e transmitirem em directo o grande acontecimento.
A mão certeira de outros tempos interrompe a conversa, retira do bolso um lenço e seca a prótese ocular lacrimejante. Certa vez, na arena, conta Chibanga, durante uma lide de joelhos, o touro roçou-lhe o ombro com o flanco e uma das farpas espetadas no dorso do animal destrui-lhe por completo o olho esquerdo.
Depois de se apagarem as luzes das grandes praças internacionais, Chibanga mandou construir uma desmontável e estabeleceu-se como empresário, na região da Golegã, levando as corridas de touros às cidades do interior. Hoje, por onde passa, o velho matador é uma figura querida e estimada, cumprimentada pelos habitantes da região. O brilhantismo da sua carreira está ainda bem vivo nas suas memórias.
Ricardo Chibanga é simples, sem qualquer traço de apoteótico na sua expressão. É óbvio nele o impulso religioso, talvez preenchendo agora mais o espaço onde antes existiram a aventura e o medo. Afinal, matar touros na arena, sob o olhar de milhares de espectadores, não se faz sem um certo grau de religiosidade, uma espécie de liturgia, que pelo menos possa fazer parte de algo grandioso e importante. “A fé, a vontade de triunfar”, podem ser um princípio espiritual e serve para explicar essa vertigem tão antiga e tão profunda, parte da própria condição humana.
Aos 68 anos (completados a 8 de Novembro), Ricardo Chibanga tem uma vida centrada nos amigos, nos outros, não tendo muito tempo para elogios. A sua atenção é bem-humorada, e não se coíbe de ligar a um ou outro amigo famoso para facilitar um encontro com o jornalista. Na sua casa situada da zona histórica da cidade, convida-nos para uma sala ampla com lareira, uma espécie de museu das suas recordações: duas imponentes cabeças de touro na parede, cartazes de corridas espanholas e portuguesas, fotografias, quadros pintados a óleo do matador enquanto jovem, um dossiê repleto de recortes de jornais internacionais.
Mas imagens televisivas das suas corridas não existem: a RTP negou-se a facultar-lhe cópias. É aqui que recebe os amigos. E a sua maior preocupação de momento, confessa, com aquela honestidade típica dos aficionados, é ter tudo pronto a tempo para o próximo São Martinho. Um Mercedes branco solitário, estacionado ali mesmo ao lado, vai ganhando poeira.
A vida heróica entrou agora naquela lassitude em que o regozijo máximo de um momento pode estar num bom bife à casa, servido com batatas, em terra de ganadeiros. A impressão que fica, depois de uma conversa e de um almoço bem-humorados, é a de alguém que procurou sempre a felicidade, empurrado – sem o saber – pela glória; alguém submetido à necessidade de criar qualquer coisa de distinto, um acontecimento onde todos os seus elementos e participantes estariam garantidos pela fé contra a insuficiência da vida. O mundo sem Ricardo Chibanga não teria sido melhor. No seu olhar há amor, o tipo de amor insuflado por alguma coisa inominável, que ao longo da vida o escolheu e lhe foi abrindo portas, sem qualquer tipo de renúncia em troca.
A história da passagem de Chibanga pela Golegã não está destinada a constar apenas nas páginas dos jornais ou revistas da especialidade. Como se não bastasse a memória dos homens, a placa escolhida pela Câmara Municipal para perpetuar o seu nome à sua terra adoptiva: “Rua Ricardo Chibanga, Matador de Touros, aluno da Escola de Toureio da Golegã, que tomou alternativa na Real Maestranza de Sevilha, em 15 de Agosto de 1971” revela toda a ternura que a cidade nutre por ele. Uma homenagem rara ainda em vida a um dos seus filhos mais ilustres.
A mão certeira e implacável de outros tempos afaga o mármore para a fotografia e os dedos percorrem timidamente as palavras da dedicatória. O orgulho e o reconhecimento no olhar. O tique que reconstrói a infância. A longínqua Mafalala na curva do voo de um pássaro. O coração feliz. “Sou um homem feliz, na cidade que eu amo”.
Na pacata Golegã, onde reside, o Maestro junto do marco da rua que aporta o seu nome.